Um excelente texto enviado pelo meu amigo Paulo Guerra, à lista de discussão da Companhia da Escalada.
AO TOPO
Por Eduardo Manhães
Experiências são insubstituíveis. Nenhum vídeo, texto ou foto pode dar a exata dimensão das nossas sensações. Mesmo tendo a certeza disso, quero tentar reviver com palavras a emoção de uma escalada.
Tudo começa bem antes, quando marco o dia de subir na rocha, na verdade quando marco o dia em que irei desafiar a mim mesmo, meus medos, minha determinação, meu desejo de superação. Sim, escalar não é apenas um esporte para mim, é uma viagem ao meu interior, uma maneira de encontrar minhas convicções, enfrentar minhas dúvidas, é um questionamento sobre o que sou capaz de realizar.
Nos dias que antecedem a aventura fico ansioso, o planejamento torna-se o alvo prioritário, busco informações sobre a via, verifico o equipamento, procuro visualizar as etapas da ascensão, me pergunto sobre a descida, se por trilha ou rapel, enfim, esquadrinho na cabeça como será estar na pedra, e sair dela.
Um dia antes, deixo tudo preparado, cadeirinha, mosquetões, sapatilha, solteira, costuras, freios, capacete, tudo na mochila. Coloco para gelar a água e os isotônicos, separo alguns materiais de primeiros-socorros, a câmera. E o coração já esta a mil. Durmo sonhando com o dia seguinte e quando ele chega não perco tempo, levanto me preparo e parto para a rocha.
Dependendo da via tenho que caminhar por alguma trilha de acesso. Começa aí um contato delicioso com a natureza. Quando vivemos numa cidade, mesmo naquelas privilegiadas por um entorno verde, perdemos por completo o entendimento do que é o silêncio das matas. Longe de ser opressor, o silêncio da floresta é libertador, porque não significa ausência de sons, mas sim o som harmonioso do vento, do canto dos pássaros, do arrastar de um lagarto nas folhas secas que crepitam sob o seu peso. O silêncio da floresta é o calar repentino do barulho da urbe, do som de motores desregulados, das ordens do nosso chefe, das urgências falaciosas do dia-a-dia. E isso é bom. Na mata posso ouvir a mim mesmo, minha respiração, a dos meus colegas de escalada, posso ouvir com mais clareza minhas divagações.
Chego a base. Vislumbro a via, anoto mentalmente os grampos que consigo enxergar, realizo uma primeira leitura da via, busco apoios, pequenas fendas, apoios mínimos que possam garantir minha ascensão. O equipamento é descarregado da mochila e visto-me com minha armadura de segurança. O guia dá início a escalada.
Entre o guia e o participante se estabelece uma necessária e imprescindível relação de confiança, de um depende a segurança do outro e vice-versa. Aqui uma primeira lição desse esporte. Para se alcançar um objetivo mútuo devemos primeiro pensar no outro, em garantir a integridade do seu companheiro, para que em seguida ele faça o mesmo por você. No mundo de hoje muita gente pensa em subir pisando na cabeça dos companheiros, dos colegas, esquecendo-se que no caso de queda, não vai existir ninguém que a freie.
A rocha quase nunca é fria, geralmente esta quente, como um ser vivo. E para mim ela esta viva, faz parte desse organismo maior chamado Terra. Por isso devo respeitá-la, não devo agredi-la. No primeiro contato das mãos com a pedra já sinto uma energia diferente fluir, não é nada místico, não é uma experiência religiosa, é sensorial, físico, concreto. A aspereza, a porosidade, o limo. Nos pés a sapatilha aperta, como deve ser, meus dedos e solas chapam para conseguir aderência, meu abdômen se retesa em busca de equilíbrio para o corpo. ESCALANDO. Essa é a palavra que nos conduz para cima.
Passo a passo, uma mão após a outra. A subida deve ser cautelosa. Nesse momento todo o entorno de problemas desaparece, só consigo pensar na via, nos apoios, em retirar as costuras, em não escorregar. O ponto de parada montado pelo guia é o objetivo primário. Outra lição da rocha para a vida. Se quer chegar ao cume, ao último grampo, trace metas curtas. Uma após a outra os obstáculos vão ficando para trás. Se pensar apenas no topo, vai desprezar o caminho, vai se esquecer de ler a via e vai cair.
A parada é um momento ímpar. De descanso, de recuperação e de apreciação da vista. Ah, a vista! Fotos podem retratar o que eu vi, mas não como eu vi ou como me emocionei. A cada parada, quanto mais alto, a vista vai se tornando mais bela, mas intangível e ao mesmo tempo mais real. É uma ambiguidade que não posso explicar, só vivenciar. É o momento de se alegrar com seu companheiro, de trocar impressões, sorrir e compartilhar a emoção. É também um recomeço para se chegar a próxima parada, a próxima meta.
Finalmente o topo, o cume ou o último grampo. O corpo exausto, o suor lavou meu corpo, os dedos das mãos esfolados pelo carinho intenso da rocha, os dedos dos pés com bolhas, mas o sentimento de ter alcançado o fim, de ter superado seus medos mais primordiais, isso anula os efeitos físicos da escalada. Olhar de cima o mundo, não com o ar de falsa superioridade dos vaidosos, mas com o orgulho dos conquistadores.
O verdadeiro conquistador não vence a natureza. O verdadeiro conquistador sabe que ela não pode ser vencida, ela é absoluta, não se verga a nada nem a ninguém, por isso o conquistador se reintegra a natureza, cônscio de que é parte do todo. Dessa forma, pode apreciar de maneira plena o cume, o último grampo, pode se sentir completo, vivo. Aí esta a beleza da escalada.
Palavras que nunca consegui escrever para expressar de forma tão correta os meus sentimentos... Show!
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